quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A chatice da lei, por José Manuel Meirim.

1. Este espaço é um exercício de liberdade de expressão. Por isso quem escreve sofre as devidas (?) consequências, e em particular encontra-se sujeito às represálias dos poderes instituídos. Mas a liberdade de expressão envolve ainda danos pessoais. Auto censura-se quem, em nome da amizade, do «conhecimento», ou de outras razões, cala aquilo que, em outras ocasiões, com outros protagonistas, sempre diria. Há que dizer o que tem que ser dito.
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2. A semana «futebolística» viu-se abalada com a decisão do Conselho de Justiça (CJ) relativa ao jogo de juniores, entre o Sporting e o Benfica, decisivo para a atribuição do título de campeão nacional da época passada. Foram proferidas declarações eivadas de contra-informação, num primeiro momento, em particular, pelo Benfica. Era claro que a decisão do Acórdão do CJ só tinha uma leitura possível: a atribuição do título ao Sporting.Mas deixemos o nefasto folclore que sempre rodeia estas matérias e vejamos a decisão do CJ, destacando o possível.
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3. É uma muito má decisão.O CJ não “gostou” de decidir. Tal é patente nas observações iniciais. Critica a acção policial e a própria Direcção da FPF. Que chatice a força policial não ter agido como devia. Que grande chatice não ter a FPF instado os clubes a repetir o jogo, impedindo que um campeonato fosse decidido na “secretaria”. Com base em que norma, sem atropelo do Regulamento Disciplinar, o poderia ter feito?Como é possível o CJ ver a sua decisão como um acto de “secretaria”? Não lhe cabe repor a legalidade e impedir que os campeonatos não se ganhem «no terreno» violando as normas?
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4. Um sério e bem preocupante erro é a afirmação de que nos encontramos no domínio da responsabilidade objectiva dos clubes, isto é, em breve, não se aplicam os princípios do direito sancionatório público, como o princípio da culpa: ninguém pode ser punido sem ter culpa.Para o CJ a responsabilidade decorre do risco próprio inerente ao exercício da actividade desportiva. Tipo instalação de gás?Ora, o Tribunal Constitucional em 1995 (!) firmou o princípio da culpa no domínio da violência dos adeptos quando reportado aos clubes de que são seguidores. Os clubes têm deveres, desde logo o de vigilância, mas ainda o da promoção, junto dos seus adeptos, dos valores da ética desportiva. E isso perdura na lei portuguesa. Mas se o CJ não gosta desta doutrina e lê na lei e nos regulamentos uma responsabilidade objectiva, só lhe resta um caminho, o qual tem sido seguido pelos tribunais franceses e italianos: não aplicar normas que são inconstitucionais e ilegais por violarem esses princípios.O CJ não existe para aplicar cegamente os regulamentos federativos, mas antes o Direito.
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5. Por último, e aqui confessamos que estamos a ir um pouco além do que devíamos (pois todos nós não conhecemos os elementos de prova), uma palavra sobre os factos dados como provados no CJ: quando os adeptos do Benfica passaram por trás de uma das bancadas onde estavam adeptos do Sporting voltaram a acontecer situações de insultos e os primeiros apedrejamentos simultâneos entre adeptos. Ora isto foi antes ou depois da fuga – legítima – para o relvado das pessoas que se encontravam na bancada? Se foi antes faz toda a diferença, pois o CJ entende que foram apedrejamentos simultâneos.
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6. O título deve ser atribuído ex aequo e há dois campeões: o CJ e o Presidente da FPF.Este, no passado dia 2 (devia estar em Lisboa) fez uma declaração à nação do futebol. Diz ele que quando ocorreu a «coisa» estava fora do país defendendo, no entanto, que se mandasse imediatamente repetir ou continuar o jogo a partir do momento da interrupção. Infelizmente (palavras do próprio), os regulamentos obrigavam à instauração de um processo disciplinar no âmbito do qual competia, em exclusivo, aos órgãos jurisdicionais a decisão de mandar ou não repetir a partida (outro chateado com os próprios regulamentos, mas pelo menos, ao contrário do CJ, parece que os conhece).“Mais uma vez, uma tomada de decisão célere da FPF, defendida por mim e outras pessoas, esbarrou nos velhos problemas do futebol português. (…) Como se sabe (…) a Direcção que lidero apresentou uma proposta de novos estatutos (…) que poderia abrir caminho a algumas soluções, nomeadamente reforçando os poderes do executivo para tomar medidas céleres e adequadas a várias situações (…)”.
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Traduzindo: tivesse eu poder absoluto e isto não tinha chegado ao que chegou, sendo certo que embora esteja consciente dos “velhos problemas” convivo com eles há muito tempo. É uma chatice, ainda por cima quando temos que respeitar normas. É tudo uma enorme chatice. O futebol está cheio de masoquistas.
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José Manuel Meirim, in Público

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